Introdução

No cenário jurídico brasileiro, a transparência salarial é um tema que tem ganhado destaque, especialmente com a promulgação da Lei nº 14.611 em julho de 2023. Esta legislação estabelece a obrigatoriedade para as empresas divulgarem informações detalhadas sobre os salários e cargos de seus colaboradores. No entanto, tal exigência tem suscitado polêmica, principalmente em face da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), norma que visa justamente garantir a confidencialidade dos dados pessoais. Neste artigo, iremos analisar a relação entre a transparência salarial e a LGPD, explorando se a divulgação obrigatória de salários e cargos infringe as disposições da lei de proteção de dados.

A Lei nº 14.611/2023 e a Transparência Salarial

A Lei nº 14.611/2023 visa trazer maior transparência às relações trabalhistas, obrigando as empresas a registrarem e divulgarem publicamente informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de homens e mulheres em altos cargos. Para tanto, semestralmente, as empresas com 100 ou mais funcionários, deverão publicar em seus sites, redes sociais ou similares, um relatório com informação sobre os cargos ocupados e seus respectivos salários e verbas trabalhistas.

A justificativa por trás dessa legislação é proporcionar uma visão mais clara e igualitária sobre a remuneração, contribuindo para a diminuição das disparidades salariais e para a promoção da equidade de gênero no ambiente de trabalho.

A LGPD e a Proteção de Dados Pessoais

Por outro lado, a LGPD estabelece princípios e diretrizes para o tratamento de dados pessoais, visando assegurar a privacidade e a segurança das informações dos indivíduos. Por dados pessoais entendemos toda e qualquer informação que possa chegar a identificar uma pessoa natural. O cargo ou ocupação pode ser considerado um dado pessoal? Sim, desde que esta informação revele o indivíduo por trás dela. Seria o caso de cargos ocupados por apenas uma pessoa: um diretor de RH, um analista de sistemas, um gerente financeiro. Ao mencionar o cargo, estaríamos automaticamente revelando a identidade do profissional ocupante e seu respectivo salário.

Ao assumirmos que o cargo ou ocupação profissional é, efetivamente, um dado pessoal, teremos o dever de protegê-lo de acordo com as diretrizes da LGPD. Se, além de revelarmos o cargo, revelarmos também o salário e verbas trabalhistas percebidas, estaremos diante de uma situação que infringe o direito fundamental à proteção de dados e que pode ocasionar danos aos indivíduos.

Conciliação ou Conflito?

A equiparação salarial entre homens e mulheres é, certamente, um objetivo legítimo e almejado. No entanto, cabe analisarmos como alcançá-la, sem colocar em risco outros objetivos e direitos. É realmente necessária a divulgação pública do relatório salarial? Não bastaria com que a empresa tivesse a obrigação de elaborá-lo e de mantê-lo à disposição das autoridades públicas, sindicatos e indivíduos legitimamente interessados? Esta foi a solução adotada por muitos países europeus.

Este questionamento também é valido em outras esferas, como a concorrencial. Uma vez que se revele os cargos e respectivas remunerações, nada impede que se inicie uma troca de informações entre empresas, facilitando assim um possível pacto para equalização de benefícios e salários de funcionários e altos cargos.

Quanto à remuneração, é necessário que seja expressa em moeda? Não bastaria indicar sua localização dentro da média aritmética das remunerações pagas ou dentro de uma faixa salarial? Lembramos que a própria Lei nº 14.611/2023 dispõe que o relatório deve conter “informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos...”, sem especificar quais seriam estas informações. De que outra forma podemos permitir a comparação objetiva entre salários sem infringir a privacidade dos indivíduos?

Hierarquia das normas

Conforme mencionamos, a Lei nº 14.611/2023 não especifica quais informações deverão estar no relatório, limitando-se de exigir que estas “permitam a comparação objetiva entre salários”. É seu decreto regulamentar nº 11.795/2023 que especifica quais informações deverão estar efetivamente presentes no relatório, dentre elas, aquelas que entendemos violar a proteção dos dados dos funcionários: o salário contratual e as verbas trabalhistas. Ocorre que, segundo o princípio de hierarquia das normas, um decreto não pode contrariar uma lei ordinária, como é a LGPD, sob pena de ser considerado ilegal.

Seria possível, então, conciliar o disposto no mencionado decreto, sem violar a LGPD? Entendemos que sim, desde que se retire a obrigação legal que prevê que os relatórios sejam divulgados publicamente. Neste caso, o acesso ao relatório estaria restrito às autoridades públicas, sindicatos e indivíduos legitimamente interessados, sendo necessário ainda, em primeiro lugar, informar os colaboradores sobre o tratamento de dados pessoais que será realizado, bem como sua finalidade. E, em segundo lugar, exigir contratualmente a confidencialidade das informações dos terceiros que solicitem o acesso a elas.

Desta forma, estaríamos garantindo o objetivo perseguido pela lei de transparência salarial, sem violar a proteção dos dados.

Conclusão:

A obrigatoriedade do registro salarial para empresas traz à tona questões complexas relacionadas à proteção de dados pessoais, conforme preconizado pela LGPD. É essencial encontrar um equilíbrio que assegure tanto a transparência quanto a privacidade, respeitando os direitos dos trabalhadores e assegurando a conformidade legal. A harmonização dessas leis é um desafio, mas também uma oportunidade para o desenvolvimento de práticas mais éticas e justas nas relações de trabalho.